domingo, 9 de novembro de 2008

Cientistas dão o primeiro passo para a espionagem cerebral

Cérebro ouvinte registra "assinatura" da identidade de quem fala. Num sistema paralelo, interpreta o que esse orador está dizendo.

Isis Nóbile Diniz Do G1, em São Paulo

Ao ouvir alguém, regiões azuis do cérebro                 identificam o falante; área vermelha interpreta conteúdo                 da fala. (Foto: Divulgação/Science)

Ao ouvir alguém, regiões azuis do cérebro identificam o falante; área vermelha interpreta conteúdo da fala. (Foto: Divulgação/Science)

Em várias brincadeiras infantis, como a chamada cabra-cega, mesmo com os olhos fechados a criança sabe quem está falando e o que a pessoa diz. Mas descobrir o que se fala e quem discorre, a partir apenas da análise da atividade cerebral, era uma incógnita para os cientistas. Em busca de uma resposta o pesquisador Elia Formisano, da Universidade de Maastricht, na Holanda, e sua equipe descobriram como o cérebro consegue realizar essa proeza. O estudo foi publicado na edição desta semana da revista “Science”.

A partir dos dados e das imagens da ressonância magnética, os pesquisadores descobriram que o córtex auditivo, localizado atrás da orelha -- no lobo temporal --, é a parte do cérebro que descobre quem está dizendo e o que essa pessoa fala. E constataram que os circuitos cerebrais responsáveis por identificar as vogais faladas e os oradores não são necessariamente as mesmas. A mente utiliza maior atividade cerebral para entender os sons do que reconhecer as pessoas.

A equipe de Formisano também notou que existem outras partes do cérebro responsáveis por essa função. Elas se dão nos locais de processamento neuronais mais sofisticados, como as áreas do entendimento e da razão. E percebeu que certos padrões se repetem e podem ser identificados, dependendendo de quem está falando e o que está sendo dito.

“Como impressões digitais, o traço neural de uma palavra não muda dependendo de quem fala. O traço neural do falante não muda dependendo do que ele diz”, afirma o cientista ao G1. Dessa maneira, a pesquisa mostra que é possível construir um “sistema de reconhecimento vocal” com base nas medições dos sinais do cérebro de um ouvinte.

Para verificar como seria possível realizar esse “grampo cerebral” -- uma alusão biológica à escuta telefônica --, sete voluntários fizeram ressonância magnética cerebral funcional -- aquela que observa a atividade do cérebro -- enquanto ouviram três pessoas diferentes pronunciarem as vogais “a”, “i” e “u”. Assim, o grupo de cientistas observou quais partes do cérebro eram ativadas. Em seguida fez uma análise das imagens obtidas utilizando um algoritmo -- fórmula matemática freqüentemente usada em computação -- criado por eles. Com isso, conseguiram identificar os padrões associadas a cada uma das vogais ou a cada um dos falantes. 

A próxima etapa dos pesquisadores será a tentativa de reproduzir resultados semelhantes em situações mais complexas e realistas. “No atual experimento, as vozes e as pessoas falando foram apresentadas de forma isolada”, explica. “No entanto, na vida real, estamos rodeados por muitos sons que são sobrepostos uns aos outros”, completa. Como o nosso cérebro trabalha tão bem para separá-los e como esse órgão tem a noção de que som é mais relevante ainda um mistério. “Pense em uma conversa em uma estação ferroviária que é perturbada pela chegada de um trem ruidoso. Como você pode ainda reconhecer o que seu amigo está dizendo?”, reflete Formisano. 

Aplicações para valer

À primeira vista, o estudo parece mais uma curiosidade do que qualquer outra coisa. Afinal, ouvir e reconhecer o que e quem fala são tarefas cotidianas. As pessoas que não possuem problemas neurológicos ou alguma doença relacionada à audição conseguem executar a tarefa. Porém, nos casos de derrame cerebral, esclerose múltipla ou lesões causadas por doenças, o estudo ajudará a descobrir que área do cérebro foi afetada.

“Esse conhecimento pode ser relevante para a engenharia criar dispositivos mais eficientes de reconhecimento automático de voz e fala ou aparelhos auditivos com um desempenho melhor do que os atualmente existentes, problemáticos especialmente em ambientes ruidosos”, explica o pesquisador. E, quem sabe no futuro, o estudo servirá como base para corrigir esses problemas usando a robótica ou as células-tronco.

Também, daqui muitos anos, será possível grampear cerebralmente suspeitos de crimes graças à descoberta? Benito Damasceno, professor de neurologia e neuropsicologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que isso é inviável. “Descobrir o que as pessoas ouvem e quem fala com elas por meio da atividade cerebral seria uma maravilha para as polícias mundiais”, diz.

Já o pesquisador holandês é mais otimista: “Em princípio, será possível descobrir a identidade e fala pelo cérebro do ouvinte, apesar de que precisamos trabalhar muito mais para isso”. 

Dificuldades em estudar o cérebro

Damasceno explica que, hoje em dia, é impossível descobrir o conteúdo das frases que uma pessoa ouve a partir da sua atividade cerebral. “Nós podemos supor sobre o que a pessoa fala, mas não o pensamento”, diz. De forma geral, em todas as pessoas, do lado esquerdo do órgão se processam os fonemas. E do lado direito, o som de maneira geral, como o canto dos pássaros.

Estudar o cérebro -- e fazer mais descobertas -- é complexo. Segundo o neurologista, as principais dificuldades se dão porque é inviável separar registros da fala de outras emoções e lembranças que possam estar associadas a ela. Ao reconhecer a voz de alguém, independente do que é dito, o cérebro “liga” determinadas áreas. “Além disso, as atividades cerebrais podem variar de acordo com cada pessoa. O cérebro de um analfabeto pode reproduzir ‘caminhos’ de atividades ou ligações diferentes de alguém mais culto, por exemplo.”

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